quinta-feira, 17 de junho de 2010

A mulher de bota

Pedro Coimbra

ppadua@navinet.com.br

Seria um dia comum de outono se não fosse pelo frio que teimava por entrar no meio dos agasalhos que vestia e me enregelar.

Esperava cumprir aquele compromisso profissional e social e me enfiar debaixo de pelo menos três cobertores, numa cama aconchegante.

Era uma reunião em que o número de homem predominavam sobre as mulheres. Eles falantes e desinibidos e elas, estranhamente caladas, o que não era de seu feitio.

Encostei-me num canto e fiquei a observá-las, todas elegantemente vestidas.

Num instante percebi que quase todas elas calçavam botas.

Quando o homem surgiu lá na África distante não usava vestuário nenhum. Literalmente todos andavam nus. E talvez o que mais aborrecesse esses nossos irmãozinhos de um passado distante fosse caminhar num chão pedregoso, cheio de armadilhas.

Envergonhados, depois de conhecer o Mal, que os tirou de seu caráter angelical de seres especiais no Paraíso, sentiram vergonha de suas partes pubentas e trataram de se cobrir com toscas roupagens.

Daí para a primeira sandália a lhes proteger os pés foi um pulo, dizem os historiadores.

Andar descalço ou não tornou-se com toda certeza um sinal de civilização.

Um empreendedor se transferiu para a Corte do Marfim, com disposição e maquinário para fabricar meias. Lá chegando percebeu que iria a falência, pois ninguém comprava seus produtos. Simplesmente não havia demanda. Encomendou novas máquinas e começou a produzir sandálias de borracha que se transformaram num sucesso...

A bota é um tipo de calçado que todos nós sabemos ter o cano mais alto que o sapato comum. A altura do cano varia com a destinação ou em razão da moda.

São de inúmeros tipos: combate, militar, de motociclista, vaqueiro, feminina e outros.

São feitas com couro bovino, sola de borracha ou couro e forros em lã, pele ou sintéticos.

Surgiram da necessidade de proteger uma parte da perna das pessoas, acabando por se tornar um artigo de moda, do gosto das mulheres.

Localizo minha amiga de muitos anos, G., com os cabelos alourados, um casaco muito elegante, preto e botas da mesma cor.

Ao vê-la e perceber suas atitudes percebi que essa história de usar botas mais do que moda era um sensual fetiche.

Fetiche é uma palavra oriunda do francês e significa feitiço. É uma espécie de obsessão por alguma coisa, situação, pessoa ou parte da pessoa. Uma atração incontrolável que origina um prazer intenso, nem sempre ligado à prática sexual.

Mas ligado também profundamente a roupas de couro pretas, chicotinho e outras práticas sadomasoquistas...

A nossa conversa flui de forma muito agradável e me ponho a pensar se G. tem conhecimento de toda a simbologia contida naquele complemento do seu vestuário.

Concluo que as mulheres têm uma percepção muito maior do que a homens para o que nos atrai.

Mesmo que seja, como para G., puro charme...

terça-feira, 1 de junho de 2010

Triste, não mais me encontrarei com você


Pedro Coimbra

         Acelerou o carro para ultrapassar um bando de motoqueiros a sua frente. No sábado havia morrido Dennis Hopper, diretor e ator de Sem Destino, filme que marcou toda uma geração, um cara que conseguiu vencer seu envolvimento com drogas e álcool, passando por momentos difíceis.
         O grupo parecia ter saltado diretamente das telas, com as mesmas máquinas e indumentárias.
         “Loucura!” Pensou Márcio. Easy Rider acontecera a mais de três décadas atrás.
         Naquela tarde ele estava ouvindo “My sweet Lord”, do tributo ao ex-Beatle George Harrinson, quando Melissa o chamou pelo telefone. Queria saber o que iriam fazer no final de semana.
-Vou pro rancho = ele disse. E logo emendou a frase: “Sem você”.
- Por que? – ela perguntou.
- Por  que estou triste e triste, não mais me encontrarei com você.
       Em 1974, resolvera comprar uma moto. Achava que essas máquinas podiam lhe devolver a liberdade perdida.
Escolheu uma motocicleta de 500cc, Kawasaki, com a carenagem verde e foi fazer um “test drive” numa avenida.
Quando se extasiava com o vento batendo no seu rosto, a chuva caiu. Um dos desses temporais repentinos e voltou para a revenda. Naquele dia fez um propósito de nunca mais andar nesses veículos de duas rodas, mesmo que tivesse que andar a pé.
O grupo de motociclistas seguia um triciclo cheio de bandeiras e caveiras que parecia conduzir seu líder.
Um seu amigo que trabalhava na Polícia Rodoviária Federal, uma vez lhe contara que vez ou outra paravam esses dinossauros e sempre encontravam drogas. Por uma dessas taras da existência humana ele colecionava fotos de acidentes com motoqueiros. Um dia ligou o computador e logo que mostrou as duas primeiras fotos Márcio sentiu mal, com ânsia de vômito.
1969 foi o ano que tudo aconteceu: Sem Destino, Woodstock e a contracultura. No Brasil, no final de 1969, o líder da ALN, Carlos Mariguella, foi morto pelas forças de repressão em São Paulo e começava a ditadura Medíci.
Melissa me dizia que não entendia essas ondas de tristeza que tomavam conta dele. Pudera! Ela era muito jovem, cheia de vida e sua maior tristeza foi a morte de Frederico, o peixinho que eu criava em um aquário.
Num ponto ela tinha razão ao criticar meus ataques de nostalgia. A vida sempre continuava com seus altos e baixos.
Como naquele dia que Márcio e os amigos foram para a Chapada caçar veados. Não viram nem um animal, beberam muita cachaça e acabou sendo vitimado na perna por um tiro de espingarda disparada por Pezão. Doeu muito e ele acabou manco para sempre.
“Fica assim não, Márcio”,  ela dizia e o abraçava com seu frescor juvenil.
                   Uma moto desgarrou da fila dupla e ele viu que era uma Indiana, uma marca muito antiga que devia ter sido recuperada. O garupeiro olhou bem nos seus olhos e não conseguiu identificar se era um homem ou uma mulher. Fez um gesto obsceno e dispararam atrás do líder.
Seu desejo imediato foi enfiar seu carro em cima deles, passar por cima, destroçá-los.
Eles tinham toda a liberdade que ele não tinha e se organizavam em grupos de cinqüenta ou mais máquinas, escapamentos abertos, perdidos em suas divagações...
Pouco a pouco eles foram se afastando. Colocou um CD para tocar e logo a voz de Bob Dylan o fez voltar a realidade.
“Desculpe-me, Melissa, minha princesa! Gostaria muito de estar com você, mas hoje é dia de juntar toda a tralha perdida pelo caminho”, pensou.
Nada demais. Afinal seria apenas um final de semana afastados, longe dos passatempos idiotas, dos jogos de baralho, das brincadeiras de adivinhações e das dificuldades para resolver os problemas culinários.
Na segunda-feira ela faria uma cara desolada e ele lhe diria mais uma vez: Triste, não mais me encontrarei com você...