Pedro Coimbra
ppadua@navinet.com.br
O que seria do
escrevinhador que vos fala se não houvesse gente neste mundinho de Deus, como
os mestres Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Antônio Houaiss, capazes não
só de listar e nos transmitir o sentido dos vocábulos da Língua Portuguesa, mas
nos fornecerem sua significação histórica?
Antônio Houaiss, filólogo, lexicógrafo,
crítico literário e gourmet, Ministro da Cultura, diplomata cassado pelo Golpe de 54 e que foi capaz
de traduzir/criar o fenomenal “Ulisses”, de James Joyce, era um homem muito
elegante que muitas vezes vi passar pela Rua Voluntários da Pátria, no Rio de
Janeiro, alojado no banco de trás de um carrão, dirigido por um não menos
elegante motorista. Gostaria de ter podido dizer a ele que havia sido um dos
poucos mortais capazes de digerir as muitas páginas do meu exemplar de “Ulisses”,
de capa dourada,adquirido na papelaria do Delly Leão Guimarães, cidadão de
Lavras que as vésperas do Carnaval de 2012 nos deixou. Há mais de duas décadas esta
obra está emprestada para minha amiga Maria
Luiza C. Lima, que tenho certeza, qualquer dia entrará pela porta da
frente da minha casa para devolvê-la...
Mas, dizia eu, Houaiss tem uma definição simles
e interessante para Carnaval. Para ele carne levare, ou “abstenção de carne”, era o período anual de festas profanas,
originadas na Antiguidade e recuperadas pelo cristianismo, e que começava no
dia de Reis (Epifania) ou 06 de janeiro, e acabava na Quarta-Feira de Cinzas,
às vésperas da Quaresma; constituía-se de festejos populares provenientes de
ritos e costumes pagãos e se caracterizava pela liberdade de expressão e
movimento; no Brasil deu origem ao entrudo.
O tal do entrudo, invenção dos
portugueses colonizadores, tinha muita violência, e como sempre foi
“domesticado” pela classe dominante, o que gerou este ar nobiliárquico dos
nossos folguedos de Momo, com uma profusão de reis, rainhas, duques e duquesas.
Um certo olhar demodé, de saudade da monarquia, que acabou gerando uma grande
confusão na cabeça deo colunista Sérgio Porto que se colocou na posição do
sambista e escreveu a genial paródia “O
Samba do Crioulo Doido”: Foi
em Diamantina/Onde nasceu JK/ Que a princesa Leopoldina/ Arresolveu se casar/
Mas Chica da Silva/Tinha outros pretendentes/ E obrigou a princesa/ A se casar
/ Com Tiradentes…/Lá! Iá! Lá Iá! Lá Iá!/ O bode que deu/Vou te contar…E
Stanislaw Ponte continua neste tom gozador até o final...
Meu amigo Horácio,
ultra-religioso, sempre me diz que a farra do Carnaval é coisa do demo. Finjo
que acredito, principalmente quando meu amigo Ernesto, do Restaurante Gourmet,
me lembra que no “esquenta” de um Carnaval de outrora, bebemos quinze litros de
rum, comprados em um armazém do Batalhão, e com muita dificuldade, depois de
uma “vaquinha”, pois a grana era curta e que ainda fui buscar mais cinco litros.
A dor de cabeça na ressaca durou até a Quarta-Feira de Cinzas...
Como podia ser demoníaca aquela festa em
que sempre surgiam dois homens muito simples, de terno escandalosamente
quadriculado, chapéus, violão e cavaquinho, cantando na praça principal da
cidade “Dá nela”, de Ary Barroso: Esta
mulher/Há muito tempo me provoca/ Dá nela! Dá nela!/ É perigosa/ Fala mais que
pata choca/Dá nela! Dá nela!/ Fala, língua de trapo/Pois da tua boca/Eu não
escapo/Agora deu para falar abertamente/Dá nela! Dá nela!/ É intrigante/ Tem
veneno e mata a gente/Dá nela! Dá nela!
E como
ninguém pensava numa Lei Maria da Penha, os versos eram politicamente corretos.
São poucos os foliões movidos
só pela paixão e o Carnaval de décadas atrás era tocado por uma cheirada profunda com a boca em um
pedaço de tecido embebido pelo lança-perfume, ou no próprio tubo. Surgia então
uma sensação de euforia e excitação, seguido de um barulhinho constante,
semelhante a um apito, ou assobio. A marca certa era Rodoro,
fabricado pela Rhodia e ninguém da minha turma tornou-se dependente. A não ser
o Fantasmão, figura mítica que ronda mesas de bares e blocos vespertinos. A
proibição do Presidente Jânio Quadros acabou com os lança-perfumes; Drogas
outras, leves ou pesadas não combinam com os folguedos. Qualquer dia vou
mostrar para o amigo Horácio, uma foto do meu pai, junto com outros jovens
lavrenses, com a Cruz de Malta ao peito e uniformes. Comunistas, na década de
30? Não. Apenas um bloco de Carnaval. E ele era um homem muito sério!
Todos os anos ouço falarem
que o Carnaval está acabando. Pura bobagem! Acontece hoje que a bagunça do
Carnaval de rua da Bahia invadiu até mesmo as cidades históricas. E nossos
finais de semana estão recheados de shows, como o mega espetáculo de Zezé de
Camargo & Luciano, que vem por aí, no mês de março. O Carnaval não é mais o
evento único de nossas vidas. Mas, qualquer dia podem voltar os corsos de
carros alegóricos e os grandes bailes de salão...Basta lembrar que a sociedade
de consumo só cresce por estas plagas...E que as ruas são o melhor lugar para
criticarmos nossos políticos de araque.
A festa carnavalesca é só o momento,
por mais que digam que não. Bem representado nos versos de Jammil e Uma Noites,
um dos reis da micareta baiana que invadiu o país: Agora que o verão passou,/ Agora que
céu já mudou de cor Agora que o Carnaval terminou,/ Quando eu vou te ver amor?/
Foi bom te conhecer,/Pelas ruas encontrar você/ Estou contando os dias pra te
ver/Boa viagem/ Te vejo no ano que vem,/ Boa viagem/Vê se pensa em mim também,/Boa
viagem/ Me liga sempre que puder,/ Vou te esperar ano que vem/ Se Deus quiser.
Certamente, paixão surgida nas Folias
de Momo sempre foi por pouco tempo!
O Carnaval terminou e não fiz nada de muito
produtivo. Nem mesmo o carteiro bateu a minha porta. Fiquei mesmo no dolce far
niente, conhecendo melhor a impresível personalidade de Ayrton Senna, num
documentário inglês exibido pela SPORT TV. Foi muito estranho ver as cenas de
sua morte e lembrar da minha amiga Maria ao telefonema antevendo o seu fim...Mas,
esta é outra história...