sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Agora que o Carnaval terminou



Pedro Coimbra
ppadua@navinet.com.br

            O que seria do escrevinhador que vos fala se não houvesse gente neste mundinho de Deus, como os mestres Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Antônio Houaiss, capazes não só de listar e nos transmitir o sentido dos vocábulos da Língua Portuguesa, mas nos fornecerem sua significação histórica?
            Antônio Houaiss, filólogo, lexicógrafo, crítico literário e gourmet, Ministro da Cultura, diplomata cassado pelo Golpe de 54 e que foi capaz de traduzir/criar o fenomenal “Ulisses”, de James Joyce, era um homem muito elegante que muitas vezes vi passar pela Rua Voluntários da Pátria, no Rio de Janeiro, alojado no banco de trás de um carrão, dirigido por um não menos elegante motorista. Gostaria de ter podido dizer a ele que havia sido um dos poucos mortais capazes de digerir as muitas páginas do meu exemplar de “Ulisses”, de capa dourada,adquirido na papelaria do Delly Leão Guimarães, cidadão de Lavras que as vésperas do Carnaval de 2012 nos deixou. Há mais de duas décadas esta obra está emprestada para minha amiga Maria Luiza C. Lima, que tenho certeza, qualquer dia entrará pela porta da frente da minha casa para devolvê-la...
Mas, dizia eu, Houaiss tem uma definição simles e interessante para Carnaval. Para ele carne levare, ou “abstenção de carne”, era o período anual de festas profanas, originadas na Antiguidade e recuperadas pelo cristianismo, e que começava no dia de Reis (Epifania) ou 06 de janeiro, e acabava na Quarta-Feira de Cinzas, às vésperas da Quaresma; constituía-se de festejos populares provenientes de ritos e costumes pagãos e se caracterizava pela liberdade de expressão e movimento; no Brasil deu origem ao entrudo.
O tal do entrudo, invenção dos portugueses colonizadores, tinha muita violência, e como sempre foi “domesticado” pela classe dominante, o que gerou este ar nobiliárquico dos nossos folguedos de Momo, com uma profusão de reis, rainhas, duques e duquesas. Um certo olhar demodé, de saudade da monarquia, que acabou gerando uma grande confusão na cabeça deo colunista Sérgio Porto que se colocou na posição do sambista e escreveu a genial paródia “O Samba do Crioulo Doido”:  Foi em Diamantina/Onde nasceu JK/ Que a princesa Leopoldina/ Arresolveu se casar/ Mas Chica da Silva/Tinha outros pretendentes/ E obrigou a princesa/ A se casar / Com Tiradentes…/Lá! Iá! Lá Iá! Lá Iá!/ O bode que deu/Vou te contar…E Stanislaw Ponte continua neste tom gozador até o final...
Meu amigo Horácio, ultra-religioso, sempre me diz que a farra do Carnaval é coisa do demo. Finjo que acredito, principalmente quando meu amigo Ernesto, do Restaurante Gourmet, me lembra que no “esquenta” de um Carnaval de outrora, bebemos quinze litros de rum, comprados em um armazém do Batalhão, e com muita dificuldade, depois de uma “vaquinha”, pois a grana era curta e que ainda fui buscar mais cinco litros. A dor de cabeça na ressaca durou até a Quarta-Feira de Cinzas...
Como podia ser demoníaca aquela festa em que sempre surgiam dois homens muito simples, de terno escandalosamente quadriculado, chapéus, violão e cavaquinho, cantando na praça principal da cidade “Dá nela”, de Ary Barroso: Esta mulher/Há muito tempo me provoca/ Dá nela! Dá nela!/ É perigosa/ Fala mais que pata choca/Dá nela! Dá nela!/ Fala, língua de trapo/Pois da tua boca/Eu não escapo/Agora deu para falar abertamente/Dá nela! Dá nela!/ É intrigante/ Tem veneno e mata a gente/Dá nela! Dá nela!
 E como ninguém pensava numa Lei Maria da Penha, os versos eram politicamente corretos.
São poucos os foliões movidos só pela paixão e o Carnaval de décadas atrás era tocado por uma cheirada profunda com a boca em um pedaço de tecido embebido pelo lança-perfume, ou no próprio tubo. Surgia então uma sensação de euforia e excitação, seguido de um barulhinho constante, semelhante a um apito, ou assobio. A marca certa era Rodoro, fabricado pela Rhodia e ninguém da minha turma tornou-se dependente. A não ser o Fantasmão, figura mítica que ronda mesas de bares e blocos vespertinos. A proibição do Presidente Jânio Quadros acabou com os lança-perfumes; Drogas outras, leves ou pesadas não combinam com os folguedos. Qualquer dia vou mostrar para o amigo Horácio, uma foto do meu pai, junto com outros jovens lavrenses, com a Cruz de Malta ao peito e uniformes. Comunistas, na década de 30? Não. Apenas um bloco de Carnaval. E ele era um homem muito sério!
Todos os anos ouço falarem que o Carnaval está acabando. Pura bobagem! Acontece hoje que a bagunça do Carnaval de rua da Bahia invadiu até mesmo as cidades históricas. E nossos finais de semana estão recheados de shows, como o mega espetáculo de Zezé de Camargo & Luciano, que vem por aí, no mês de março. O Carnaval não é mais o evento único de nossas vidas. Mas, qualquer dia podem voltar os corsos de carros alegóricos e os grandes bailes de salão...Basta lembrar que a sociedade de consumo só cresce por estas plagas...E que as ruas são o melhor lugar para criticarmos nossos políticos de araque.
A festa carnavalesca é só o momento, por mais que digam que não. Bem representado nos versos de Jammil e Uma Noites, um dos reis da micareta baiana que invadiu o país: Agora que o verão passou,/ Agora que céu já mudou de cor Agora que o Carnaval terminou,/ Quando eu vou te ver amor?/ Foi bom te conhecer,/Pelas ruas encontrar você/ Estou contando os dias pra te ver/Boa viagem/ Te vejo no ano que vem,/ Boa viagem/Vê se pensa em mim também,/Boa viagem/ Me liga sempre que puder,/ Vou te esperar ano que vem/ Se Deus quiser.
Certamente, paixão surgida nas Folias de Momo sempre foi por pouco tempo!
O Carnaval terminou e não fiz nada de muito produtivo. Nem mesmo o carteiro bateu a minha porta. Fiquei mesmo no dolce far niente, conhecendo melhor a impresível personalidade de Ayrton Senna, num documentário inglês exibido pela SPORT TV. Foi muito estranho ver as cenas de sua morte e lembrar da minha amiga Maria ao telefonema antevendo o seu fim...Mas, esta é outra história...

domingo, 5 de fevereiro de 2012

A voz do Brasil




Pedro Coimbra

            Acompanhava meu amigo Eduardo Lacerda numa quinta-feira, 23 de agosto de 1968, na minha única visita a Ouro Preto,  para a fundação de um cineclube. Estávamos sentados em um barzinho com um pessoal da Universidade bebendo cerveja e cuba livre. Quando de um alto falante distante começou a sair a voz de Vicente Celestino, cantando o “O ébrio” e depois “Coração materno”. Morrera aos 73 anos o tenor que cantava: “ Disse o campônio a sua amada/Minha idolatrada diga o que queres?/Por ti vou matar, vou roubar/Embora tristezas me causes mulher/Provar quero eu que te quero”. Na minha casa este disco tocara na vitrola da minha mãe até gastar. E menino ainda eu assistira o filme o “O Ébrio” dirigido por sua esposa Gilda de Abreu e estrelado por ele.
Sofia, uma das moças sentada ao meu lado, passava suas longas pernas nas minhas, me bolinando. Ela era filha de alemães, seu pai era pintor e muito conhecido na cidade. Parecia ter somente dois assuntos na sua linda cabecinha: sexo e relembrar das cenas de cenas de "Hiroshima mon amour" e "L'année dernière à Marienbad", de Alain Resnais que assistira em Belo Horizonte, na Imprensa Oficial. Lembro-me que ela tinha cabelos muito negros, compridos, um rosto lindo e quando dizia “mon amour”, fazia uma boca sensual.
            O projeto de reativar ou fundar cineclubes nas cidades do interior foi uma das melhores ações do movimento do cinema novo mineiro. Mas tinha uma logística complicada. O filme, sempre em 16mm, era alugado e tinha que ser enviado para as cidades. No começo deu tudo certo. Até o dia que não me foi possível enviar as latas pelo ônibus para minha cidade natal. Os dirigentes locais se desesperaram e acabaram por exibir um filme do Tarzan e da Jane, o que assustou minha tia Milita, adepta dos filmes de arte.
            Sempre tive um relacionamento estranho com a cidade de Ouro Preto: paixão e distanciamento. Acabei indo lá poucas vezes, mas mesmo assim, Maurício Andrés Ribeiro e eu, fizemos um belo cartaz, baseado em uma foto em alto contraste, que foi premiado. Por sinal, nunca vi a peça depois de finalizado.
            Em 1968, enquanto procurávamos difundir a sétima arte o mundo já estava de cabeça baixo. Principalmente no exterior, marcado pela rebeldia dos estudantes na Europa, potencializado em maio de 1968, o que influenciou a juventude brasileira.. O golpe de 1964, ao contrário do que se pensava endurecia cada vez mais. O autoritarismo cresceu e se firmou no dia 13 de dezembro de 1968, com a decretação do AI-5, lido na voz grave do locutor Alberto Curi, a Voz do Brasil, irmão do narrador esportivo Jorge Curi e do cantor Ivon Curi, nascidos em Caxambu. As perseguições advindas desta ação da direita inviabilizaria todas as ações populares e estudantis no país.
            Mas, naquele dia em Ouro Preto, nem a morte de Vicente Celestino, que nos emocionou a todos, foi capaz de nos entristecer. Minha grande preocupação era as pernas de Sofia roçando nas minhas, seus seios empinados e sua boquinha articulando “mon amour”. Afinal de contas começávamos um tempo de liberdade total, do amor livre, da liberação  das drogas e do surgimento do amor livre.
            Acabei a noite com uma moreninha de Ubá, estudante de Geologia, que me arrastou para sua república.
            A visão de Sofia, a gringuinha saliente, desapareceu na madrugada escura da memória, como também todos os absurdos gerados pelo Golpe de 1964...